Nota para o leitor: Esta entrevista foi originalmente publicada na Inter Magazine 261 (agora Revista Manja), em 2021. À data desta entrevista, o Nolla ainda era um projeto em crescente. Nos últimos anos, o restaurante tem vindo a destacar-se no panorama gastronómico finlandês, tendo conquistado uma estrela verde Michelin e sendo repetidamente reconhecido como um dos melhores do país. Atualmente, Carlos é ainda proprietário de mais dois espaços de restauração: o ELM e o Nolita.
Carlos Henriques é português e fundador do primeiro restaurante desperdício zero em Helsínquia, na Finlândia. O seu Nolla é um exemplo da linha de futuro que qualquer restaurante, no mundo inteiro, pode seguir.
A sustentabilidade e o desperdício zero são temas da ordem do dia. E o Nolla, o primeiro restaurante zero waste da Finlândia, não pretende que ninguém se esqueça que é urgente agir de forma a proteger o futuro da cozinha e do mundo. A ideia surgiu da cabeça de três amigos — um português, um sérvio e um espanhol — que viviam frustrados com a maneira como as cozinhas onde trabalhavam tratavam os seus produtos. “No geral, há muito desperdício nos restaurantes. No início, queríamos que o Nolla fosse apenas um pouco mais sustentável mas rapidamente percebemos que não podíamos ser só isso. Não podíamos ter em atenção apenas aquilo que íamos servir mas também tudo o resto, como os copos, as loiças e as fardas do staff. Tudo tinha que ser sustentável”, começa por explicar Carlos Henriques.
Carlos chegou à Finlândia para acompanhar a namorada e depressa se habituou ao país passando por restaurantes como o Chez Dominique e Olo. Antes disso, fez uma viagem para conhecer o mundo, onde passou por países como Inglaterra, Tailândia, Austrália e China. Quando saiu de Portugal, há cerca de dez anos, apenas contava com passagens profissionais pelo antigo hotel Aqua Pura (agora Six Senses Valley) e pelo Belcanto. “Queria ver o que se fazia lá fora e decidir sair muito novo. Pelos restaurantes por onde fui passando, tentei sempre escolher aqueles que trabalhavam os produtos locais, que é precisamente o que fazemos no Nolla”, afirma.
Natural de Mangualde, em Viseu, Carlos é um homem com ideias claras do que quer para o seu negócio e consciente do que a contínua falta de preocupação com os temas do desperdício alimentar podem significar. O primeiro activismo tem de partir dos cozinheiros e, na Finlândia, é Henriques quem levanta a bandeira.
Como é que um cozinheiro português chega à Finlândia?
Inicialmente fui para a Finlândia porque a minha namorada [agora mulher] queria fazer um mestrado. Nunca pensei em ficar porque para mim era uma situação provisória. Acabei por começar a trabalhar e, entretanto, a minha filha nasce. Foi quando me apercebi que afinal iria ficar ali por mais algum tempo e que tinha de começar a fazer algo por mim. A Finlândia é um país muito pequeno e na altura havia apenas quatro ou cinco restaurantes com estrela Michelin e eu não me identificava com nenhum deles. Tinha de abrir o meu próprio restaurante.
Foi quando surgiu a ideia para o Nolla?
Sim! Comecei a fazer jantares pop up com dois amigos cozinheiros, o Albert Sunyer que é espanhol e o Luka Balac, sérvio.
Mas a ideia de fazer um restaurante sem desperdício ou “zero waste” surgiu logo?
A nossa ideia inicial era fazer um restaurante normal mas que conseguisse ser mais sustentável do que aqueles que tínhamos trabalhado anteriormente e que desperdiçavam imensa comida. Mas tu quando começas a planear vês que não podes ser sustentável apenas no que serves, também tens de ser na roupa que o teu staff vai usar no restaurante, bem como, nos talheres e nos copos onde vais servir a comida e a bebida.
Esses pop up duraram quanto tempo?
Cerca de três anos. No início, começámos por alugar escritórios no meio da cidade para fazer os nossos jantares. Era uma loucura! À sexta-feira íamos com um camião de mudanças e montávamos tudo no espaço do escritório. Antes disso, tirávamos fotos a tudo para depois no domingo, voltar a colocar as coisas no lugar. Começámos a ter filas de espera. Acabámos por mais tarde conseguir arranjar um lugar fixo onde ficámos oito meses, estávamos cheios todos os dias e até fomos convidados para fazer um pop up em Nova Iorque. Durante todo esse tempo, fizemos um crowdfunding, angariamos 100 mil euros e finalmente conseguimos abrir o nosso restaurante numa morada fixa.
Quando disseste aos teus amigos e familiares próximos que irias abrir um restaurante com as características do Nolla, como é que eles reagiram?
A minha mãe questionou-me logo do porquê de abrir um negócio desses quando tinha um emprego estável. Sem dúvida que toda a gente disse que não era possível em termos financeiros mas nós vimos que estava a funcionar. Os pop up ajudaram muito a que tivéssemos a capacidade de dar o salto e fazer uma coisa mais a sério.
O Nolla identifica-se como sendo um restaurante zero waste. A nível prático, o que é que isso representa?
O Nolla é zero waste hard core mas eu percebo que nem todos têm de seguir as normas de maneira tão dura. Nós fazemo-lo para mostrar de que é possível fazer boa comida sem usar película, sacos de vácuo e caixas de single use plastic. Sobretudo, queremos mostrar que é possível trabalhar só com produtos locais num país como a Finlândia. Se nós conseguimos, porque é que os outros não podem também ser um bocadinho mais sustentáveis? Nem sempre as soluções que fazemos têm que custar mais ou criar dificuldades, muitas vezes estas têm muitas mais vantagens.
Por vezes, acontece trabalhares imenso para arranjar alternativas que pensas ser sustentáveis e que depois acabam por não ser. Isto tudo faz parte do trabalho de evolução do restaurante. Por exemplo, os primeiros guardanapos que usámos eram resultado de garrafas de plástico recicladas mas depois descobrimos que cada vez que lavávamos os guardanapos estávamos a libertar plástico para o oceano. É um trabalho constante que tens de ter.
Respondendo à tua pergunta, tudo o que compramos tem de vir numa caixa que possa voltar para trás com o fim de ser reutilizada. Por exemplo, as bebidas e o óleo vêm em barris. Os nossos pratos são de cerâmica reciclada, os copos são de garrafas cortadas a meio, a roupa do staff é feita a partir de lençóis velhos de hotéis. Também usamos um compostor no qual produzimos 85 quilos de composto por semana e temos um software onde medimos todo o nosso desperdício.
Quando chega uma nova pessoa para trabalhar, qual é a regra do restaurante que mais tempo esta demora a interiorizar?
Penso que é o não ter papel para limpar as mãos. No Nolla não há rolo de cozinha mas sim toalhas, de diferentes cores como as facas. Depois não há baldes do lixo. Nas cozinhas pelo mundo fora, tu podes esconder coisas no lixo, ninguém vê. No Nolla, cada pessoa tem um pequeno balde com um saco de lixo transparente. Se tiveres a cortar um peixe e fazeres asneira não podes esconder como o poderias fazer noutro tipo de restaurante. Normalmente, em três semanas, as pessoas já estão habituadas às nossas regras. Quando saem é que ficam desgraçadas para a vida porque já não conseguem trabalhar numa cozinha em que as coisas não aconteçam desta forma.
Como mencionaste, o Nolla mudou-se recentemente para uma nova localização. Quais as principais diferenças relativamente ao espaço anterior?
A principal diferença é que agora temos uma cervejaria e um bar. Cerveja ou cidra é algo que podes fazer localmente e as nossas são pensadas para serem servidas com a comida que fazemos. Depois, temos um bar, com 22 lugares e que juntam-se aos 38 do restaurante onde podes comer à carta ou simplesmente beber uma cerveja. Ainda nesse espaço temos torneiras de parede que servem bebidas brancas para fazer os cocktails, o que ajuda à nossa causa porque poupa-nos espaço no armazenamento de garrafas e nos transportes.
Num país como a Finlândia, é fácil ou difícil encontrar produtores para fornecer o restaurante? Como é a vossa relação?
Procurar produtores na Finlândia para trabalhar é um trabalho constante. Neste momento, até temos uma pessoa a tempo inteiro a ajudar-nos com essa parte. Trabalhamos com pequenos produtores e, na maior parte dos casos, acontece eles apenas produzirem cinco tipos de produtos diferentes e nós simplesmente compramos tudo.
Uma coisa engraçada que acontece é que os produtores finlandeses desvalorizam constantemente o que têm e a qualidade dos seus produtos. Em termos de humildade penso que são muito parecidos com os portugueses. Depois não agem, não têm iniciativa. Ficam à espera que fale com eles, que os procure e isso é uma coisa que também acontece em Portugal. Às vezes temos de implorar para que nos vendam os seus produtos.
Há alguma coisa que comprem já feita?
O nosso azeite vem da produção da minha mãe, em Portugal. Apenas trabalhamos com as garrafas que ela traz quando me vem visitar que são cerca de 15 litros. Por ser limitado, usamos o azeite para coisas muito específicas. Depois, temos o vinho que servimos cujas referências são provenientes de Portugal, Sérvia e Espanha — os nossos países de origem. Mas o uso de vinho no nosso pairing de bebidas é algo que vai deixar de acontecer no futuro porque não há vinho na Finlândia e nós queremos focar-nos no que podemos fazer localmente. Vamos concentrar-nos antes nas cervejas, nas cidras, nos sumos, nos cocktails.
A Finlândia tem uma grande qualidade de cereais a nascer naqueles três meses em que a agricultura está em perfeitas condições. A ideia que não se produz nada na Finlândia é errada mas claro que temos dificuldades a esse nível que não teríamos se tivéssemos localizados em Portugal, por exemplo.
Que tipo de dificuldades falas?
Comprar local na Finlândia é muito difícil, é um dos países mais complicados para ter um projecto destes. Os invernos são longos e não há nada. Os piores meses para nós são os de Abril e Maio. Por exemplo, neste momento não há nenhuma erva aromática na Finlândia, por isso, andamos a usar óleos aromáticos que fizemos há uns tempos. Portanto, usamos fermentados, congelamos coisas, desidratamos outras e usamos algumas técnicas antigas de armazenamento de legumes e outros produtos. Acreditamos que se o Nolla é possível na Finlândia, é possível em todo o lado.
Uma das coisas mais complicadas para nós é não poder usar especiarias, como a pimenta ou o limão, porque são coisas que não existem lá. Recentemente descobrimos que podemos usar o sumo de marmelos para substituir o limão. Estamos constantemente a pensar diferente porque os produtos são limitados então tens que acabar por encontrar os sabores que conheces noutros ingredientes.
Com é que o povo finlandês recebeu um restaurante como o vosso?
Há pessoas que odeiam, pensam que vamos servir restos de supermercado ou cabeças de peixe. Felizmente, temos muitos clientes que nos visitam e gostam, depois temos os que já nos conheciam da primeira localização. Estamos cheios todos os dias, o que é óptimo!
Como é que um restaurante como o Nolla pode inspirar os seus clientes?
Acho que quando normalizamos o que fazemos, conseguimos inspirar. É incrível quando o nosso cliente chega ao fim da refeição e pergunta-nos onde está o zero waste no que acabaram de comer. Está em todo o lado mas ele não notou e isso é bom, não temos de mudar a experiência normal de um restaurante. Quando os clientes entram no Nolla nada indica que este seja um restaurante zero waste ou que tenha em conta normas de sustentabilidade. A única coisa que temos é uma frase no menu, com letras bem pequeninas, em que dizemos que se o cliente tiver qualquer dúvida sobre a máquina de compostagem instalada mesmo em frente à sala de refeições, o staff tem todo o gosto em esclarecer.
Muitas vezes, o próprio cliente não sabe bem o que é a sustentabilidade. A sustentabilidade é uma caixa muito grande, é um caminho longo e duro que ninguém tem bem definido. Parte do nosso trabalho é definir quais as normas de sustentabilidade para um restaurante funcionar. Normas estas que podem ser aplicadas a um restaurante Michelin, a uma cantina de escola ou até mesmo a uma prisão. Espero que, um dia, o Nolla possa ser um projecto informativo e um exemplo para as pessoas que querem fazer melhor.
Acreditas que o discurso inerente à sustentabilidade se tornou em objecto de marketing para os restaurantes?
Acho que sim. E isso chateia-me um bocadinho. Tenho todo o respeito por chefes que optam pelo caminho de serem mais sustentáveis porque sei o trabalho que dá. Casos dos responsáveis do Silo, em Inglaterra e do Amass, na Dinamarca, espaços onde tive a oportunidade de fazer um estágio antes de abrir o Nolla. No final de contas, para um restaurante funcionar, as pessoas têm de gostar da comida que fazes. Se forem ao restaurante porque este é sustentável, não voltam. A coisa mais importante num restaurante, seja este zero waste ou não, tem de ser o produto.
Deste recentemente uma palestra na Gulbenkian, em Lisboa, em que falaste dos temas que o teu restaurante defende. Com que percepção ficaste do que está a ser feito em Portugal?
Ao que parece já há escolas portuguesas a ter sacos do lixo transparentes para os miúdos ganharem noção do que deitam fora e isso já é um passo em frente. O desperdício alimentar é algo normalizado nas nossas crianças logo desde muito cedo. Felizmente, há casos de escolas que se mostram preocupadas em adoptar medidas contra isso e algumas pediram-me conselhos nesse sentido, sobretudo quando falamos no desperdício alimentar em cantinas.
Quando é que achas que a sustentabilidade vai ganhar um novo caminho em Portugal?
Quando houver legislação. Quando a ASAE surgiu, muita coisa mudou para melhor nas cozinhas dos restaurantes portugueses, apesar de muita gente ter odiado que isso tenha acontecido. Sem legislação não acredito que as coisas mudem muito. A não ser que a próxima geração seja mais inspirada que a minha, mas não sei se é possível. A nossa geração continua a destruir o ambiente como a dos nossos pais o fez. Mas quero acreditar que é possível e que, muito em breve, o governo português possa olhar para este tema.
Achas que estaríamos preparado para um restaurante como o Nolla?
Creio que sim. Se tiveres um restaurante com comida boa e bom serviço, vai correr bem. No fundo, é isso que queremos ser. O Nolla é um restaurante normal que, por acaso, tem em conta o tema da sustentabilidade e trabalha o zero waste.
Uma última questão: como é que três cozinheiros conseguem gerir juntos uma cozinha? Não há conflito?
Não, porque só há um responsável de cozinha, o Albert, e que curiosamente sempre esteve mais ligado à pastelaria. Não podia haver três chefes num restaurante e então resolvemos dividir funções. O Luka é responsável de sala e bebidas, enquanto eu estou na parte da gestão do restaurante, algo que eu já fazia no processo dos pop up. Além disso, estou sempre presente nos serviços, a minha função é receber os clientes e fazê-los felizes! Mas o Albert é o que tem a vida menos facilitada, com dois cozinheiros sempre a opinar...
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